terça-feira, outubro 23, 2007

Risos

Amanheceu.

Risos de crianças lá longe, abandonadas de paixão.

Quando se passa a vida em revista nem sempre nos apercebemos dos momentos. Surge-nos um cliché difuso que se perfila em chama. Assim, são as recordações de um ente ao qual chamaremos Carlos. Como os Românticos. Não que seja propositado. Só um nome como outro nesta escrita sumariada. Falar da vida dos outros, ficção ou realidade, é sempre revelador de uma disfunção. Até que ponto se pode dizer que a verdade contada é verosímil ou que a história narrada se perde no sabor da imaginação humana?

Meu caro, isto está por sua conta. A história de uma vida é sempre ficção. Como faremos nós para nos lembrarmos de todas as emoções de um momento? Ajustamos aqui ou ali. Ao sabor das sensações actuais, dos sentidos presentes. Relatos de uma vida ao sabor da maré ou do interruptor, é aquilo ao qual me tentarei dedicar. Relatos ou retalhos filtrados por ele, vistos por mim e lidos por si. Três olhares da mesma vida que esboçaremos em conjunto.

Risos de crianças lá longe. Abandonadas da paixão do sol. Contrariadas, separam-se com promessas sem fim de retomar as brincadeiras onde as tinham deixado. Acenam-se mãos num adeus curto. Atraiçoam-nos mais uma vez os olhos que preferem outras imagens. Felizes talvez. Não sei dizer. Há lugares na mente que se escondem. Recalcam-se no fundo da despensa. Imaginam-se esquecidas para que não se possam recordar. Propositadamente voltam ao de cima, por vezes. Quando não queremos, principalmente. Nos sonhos sem fim dos quais nos restam nevoeiros de saudade.

Lá está, portanto, Carlos, fechado num quarto. Os olhos detêm-se na folha branca. Escreve, pensa, tenta escrever, pensa, rabisca, rasga e deita fora. Foge da secretária e grita. Abre a porta, enche os pulmões de ar e solta novamente o desespero. Tudo lhe traz à memória pequenos instantes de vida que ele queria registar, mas cada palavra escrita é força sobre-humana. Uma libertação de energias que sofre com Carlos naquele deserto verde. Podia sair, deixar a casa e mais um sem fim de possibilidades que me vêm à alma mas não à dele.

Voltou a entrar e pousou o olhar sobre o retrato. Aqueceu-lhe o espírito. Este restará gélido pelo que me apercebo. Insensível ao seu dono como um cão raivoso que deseja sofrer, e provocar sofrimento. Ao seu lado, um candelabro de oito velas, por baixo uma lareira que crepita dando ao ambiente um ar sereno, invejável, e, novamente, as crianças que riem, longe de tudo. Inclusive do branco orgulhoso da sua pureza. Atira-as para o lado, consumindo-se em chamas. O choro agudo fere. Leva as mãos à cabeça, tapa os ouvidos e chora. Chora pela sua mensagem que nunca mais passará a ser lida com prazer.


Excerto de um livro que o Universo teima em não querer publicar.
Guerra, Joaquim. Golem. Eternamente no prelo.

16 comentários:

david santos disse...

O caso Cláudia, não está perdido. Mandem Mails a esta gente e não só:

geral@embaixadadobrasil.pt

Temos que estar solidários com a menina Cláudia.

Pede a outros blogues que façam o mesmo.

Jorge P. Guedes disse...

E tanto lixo se publica por aí!

Junta-te aos bons não publicados, Joaquim, e verás que fila grande se forma! Vives em Portugal, meu caro.
Deixa, nem sequer daria para ganhar a vida a escrever!

Segue o teu prazer e conforta-te com ele. Mas não desistas. Talvez um dia acordem!

Um abraço.

as minhas palavras disse...

beijos e uma quarta-feira ;)

www.cantinhodapipoca2123.blogspot.com

Lana disse...

Krido Kim
será este o teu "nick" literário? quem sabe um dia se sim...
escreve, recita, canta, abraça, desabafa mas nunca desistas!!
um sorriso mto luminoso e mta saudade
Lana

Sol da meia noite disse...

Mundo estranho, o das recordações...

Ficção/realidade... uma ténue linha a separar...

Texto que toca.
Beijo...

Whispers disse...

Ola lindo!
Quem nao tem recordacoes?
Sao com elas que se faz a vida melhor, sao muitas vezes aquela recordacao linda que nos faz sorrir quando os olhos teima em chorar....
beijos mil e boa semana
whispers

Eärwen disse...

Retorno meu irmão e venho deixar-te um beijo em forma de pérola incandescente.

Gosto quando você deixa tua mão correr livre assim!

Recebe um abraço carinhoso dessa tua irmã de fogo.

Eärwen

Lana disse...

Tão bom estarmos em sintonia.
vai, vai ao meu sitio ...
1 sorriso mto luminoso cheiinho de sdds
Lana

lua prateada disse...

Lindo e, triste amigo mas � assim como descreves ...Vim deichar um abra�o ao meu vizinho.Beijinho prateado da
SOL

Lúcia Laborda disse...

Oie meu amigo! Adorei o conto! Porque não publicar? É perfeito!
Beijos

Lúcia Laborda disse...

Oie meu amigo! Adorei o conto! Porque não publicar? É perfeito!
Beijos

Elvira Carvalho disse...

Gostei do post, da descrição do desespero do Carlos do seu choro.
Pena que seja de um livro não publicado. Infelizmente é muito difícil publicar algo em Portugal.
Espero que um dia isto mude.
Um abraço, boa semana

Lúcia Laborda disse...

Oie J. Vim lhe ver e desejar uma semana maravilhosa!
Beijos

O Profeta disse...

Mais um belíssimo texto...escrita adulta, digna de um profissional...


Aquele abraço

Jorge P. Guedes disse...

Como já deixei um comentário no dia 23, hoje aqui fica apenas um abraço.

*SP Sentimento Puro disse...

Meu Amigo,

Texto fantástico...eu não diria que é o universo que está conspirando para a não publicação deste teu livro...pensa um pouco,não deveria tu mesmo se encarregar de "lutar" com determinação para que isto aconteça? Sei,entendo que não é tão fácil quanto "encontrar editoras"...mas a qualidade dos teus escritos, estou certa deverá de ser percebida por olhos de quem sabe ver.Vai à luta, não te desanimes.

Beijo Comsentido,